O fato de ser um ser humano é infinitamente mais importante do que todas as singularidades que distinguem os seres humanos. A “virtude”, como diziam os antigos, define-se ao nível do “que depende de nós”. Em ambos os sexos representa-se o mesmo drama da carne e do espírito, da finalidade e da transcendência; ambos são corroídos pelo tempo, vigiados pela morte, têm uma mesma necessidade essencial do outro; podem tirar de sua liberdade a mesma glória; se soubessem apreciá-la não seriam mais tentados a disputar-se privilégios falazes; e a fraternidade poderiam então nascer entre ambos. (…)
Em todo caso, objetarão alguns, se tal mundo é possível, não é desejável. Quando a mulher for “igual” ao homem, a vida perderá seu “sal pungente”. Este argumento não é tampouco novo: os que têm interesse em perpetuar o presente vertem sempre lágrimas sobre o mirífico passado que vai desaparecer sem conceder um sorriso ao jovem futuro. É verdade que, suprimindo os mercados de escravos, acabaram com as grandes plantações tão magnificamente ornadas de azaléas e camélias, arruinaram toda a civilização sulista [dos Estados Unidos]; as velhas rendas juntaram-se, no sótão, aos timbres tão puros dos castrados da Cistina e há um certo “encanto” feminino que ameaça, ele também, desfazer-se em pó. Convenho em que é ser um bárbaro não apreciar as flores raras, as rendas, a voz cristalina do eunuco e o encanto feminino. Quando se exibe, em todo o seu esplendor, a “mulher encantadora” é um objeto bem mais exaltante do que “as pinturas idiotas, ornatos de portas, cenários, telas de saltimbacos, tabuletas, iluminuras populares” que embeveciam Rimbaud; enfeitada com os mais modernos artifícios, trabalhada segundo as mais novas técnicas, ela chega do fundo dos séculos, de Tebas, de Minos, de Chichen Itza; e é também o totem plantado no coração do sertão africano; é um helicóptero e é um pássaro, e eis a maior maravilha: sob seus cabelos pintados o sussurro das folhagens faz-se pensamento e palavras escapam-lhe dos seios. Os homens estendem as mãos ávidas para o prodígio; mas logo que o pegam ele se dissipa; a esposa, a amante valem exatamente o que valem; seus seios também. Um milagre tão fugidio – e tão raro – merecerá que perpetuem uma situação nefasta para ambos os sexos? Pode-se apreciar a beleza das flores, o encanto das mulheres e apreciá-los pelo seu justo valor; se tais tesouros se pagam com sangue ou desgraça, cumpre saber sacrificá-los.
O fato é que esse sacrifício parece singularmente pesado para a maioria dos homens. Pondo-se a existir para si, a mulher abdicará a função de duplo e de mediadora que lhe outorga seu lugar privilegiado no universo masculino; para o homem solicitado pelo silêncio da natureza e a presença exigente de outras liberdades, um ser que seja a um tempo seu semelhante e uma coisa passiva apresenta-se como um grande tesouro.
Entre outras coisas, nada me parece mais contestável do que o slogan que vota o mundo novo à uniformidade, logo ao tédio. Não vejo ausência de tédio neste mundo, nem nunca vi que a liberdade criasse uniformidade. É quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que o casal humano encontrará sua forma verdadeira.